Mais da metade dos seres humanos acredita em um deus único, o Deus com maiúscula dos cristãos, judeus e islâmicos. Mas ele tem uma origem em uma história.
Assim começa o Shemá,
a reza mais importante do judaísmo. Ao repeti-la duas vezes ao dia, os judeus
professam sua fé exclusiva em Yahweh, deus único, onipotente, onisciente. Esse
é o Deus mais popular do mundo: entre cristão, judeus e islâmicos, 3,6 bilhões
de pessoas professam uma das versões do culto de Yahweh, mais da metade de
todos os seres humanos. Qual a origem desse Deus com maiúscula, que dominou
meio mundo? E de onde surgiu essa ideia que há apenas um Deus, ao contrário do
que todos os povos acreditaram durante a história?
Segundo a Bíblia
(e também o Alcorão), é simples: Deus
existe, e só ele. Yahweh reinou desde sempre, tendo contato direto com os
primeiros homens, de Adão até Noé, quando o dilúvio matou toda a humanidade
menos a sua família. Depois de Noé, seus filhos se dividiram para povoar o
mundo e os povos começaram a cultuar outros deuses, erroneamente. Há cerca de 4
mil anos, Deus se revelou a Abrão, um sumério da cidade de Ur (no atual Iraque)
que mudou o nome para Abraão. Após milênios de desventuras, incluindo um longo
período de escravidão no Egito, que terminou com as sete pragas de Moisés
contra os egípcios, os descendentes de Abraão conquistaram um pedaço de Canaã e
fizeram dele sua pátria. Desde Abraão até hoje, os hebreus seguem os mesmo
Deus.
Fenícios e Hebreus
Canaã era uma região que correspondia às terras de Israel,
Palestina, Líbano, Jordânia e Síria. Os cananeus se dividiam em pequenos
reinos, como Moab, Amon e Edom, e cidades-estado, como Tiro, Sidon e Biblos – os habitantes
destas últimas ganharam dos gregos os apelido de “fenícios” e fundaram um
império comercial. Cananeus falavam línguas semíticas muito próximas. Dividiam
o alfabeto, mesmas roupas e mesmos utensílios, viviam os hebreus, no Reino de
Israel – que, no entanto, não se consideravam cananeus. Ou ao menos não se
consideravam na época em que a Tanakh
(o Velho Testamento) foi escrita, entre o século 6 e 5 a.C., explicando como
sua origem era estrangeira.
Essa migração não foi confirmada pela arqueologia. Não há
evidências de uma grande colonização estrangeira na região. Não há menção egípcia
ao cativeiro dos hebreus. As campanhas militares do final da Era do Bronze
tinham outros protagonistas: Os egípcios, que tratavam a região como seu
quintal, e os povos do mar, que a invadiram pelo norte. Em 1400 a.C., quando
Josué teria conquistado Jericó, a cidade estavam deserta havia 150 anos.
Em outras palavras, os hebreus não eram inimigos dos
cananeus. Eles eram cananeus. “O crescente consenso entre os arqueólogos é que,
no inicio a maioria dos israelitas era cananeu”, diz Robert Gnuse, professor de
Velho Testamento da Universidade de Loyola, EUA. “Aos poucos, as pessoas que
desenvolveram uma identidade israelita tenderam a viver no alto das colinas de
Canaã. As que mantiveram a identidade canaanita habitavam as planícies.”
Deus e Sua Esposa
A Bíblia narra a história dos hebreus como a imposição de um
deus estrangeiro a pagão canaanitas. “Graças ao relato bíblico, o monoteísmo da
antiga Israel tem sido considerado uma revolução contra o pensamento religioso
de seus vizinhos”, diz Mark S. Smith, professor de estudos bíblicos da
Universidade de Nova York, no livro The
Origins Of Biblical Monotheism (As Origens do Monoteísmo Bíblico). “Porém,
estudos mais recentes têm buscado situar a história bíblica do monoteísmo em
seu contexto cultural mais amplo”, isto é, o contexto do politeísmo canaanita.
Textos e artefatos encontrados em Ugarit (atual Ras Shamra,
na Síria) datados dos séculos 15 à 12 a.C., indicam que os hebreus cultuavam o
panteão de deuses cananeus. “As quatro camadas da sociedade humana – rei,
nobres, camponeses e escravos – eram espelhadas em quatro camadas de divindade”,
diz o historiador canadense K. L. Noll no artigo Canaanit Religion (Religião Canaanita). O topo do panteão era
ocupado por um deus-chefe, El, e por sua esposa, Asherah. Abaixo vinham os deus
cósmicos, como Baal e Anath, que controlavam a tempestade, a fertilidade e
outros aspectos naturais. Na terceira camada vinham os deuses que auxiliavam na
vida diária das pessoas, como Kothar-wa-Khasis, o deus da habilidade. Por fim
os mensageiros, que não eram mencionados por nome.
Essa hierarquia de deuses é chamada henoteísmo (ou
monolatria). “Há uma distancia muito curta entre essa noção henoteísta e a
ideia monoteísta, ou seja, a de que um deus é realmente Deus e quaisquer outros
seres sobrenaturais são criaturas insignificantes sob seu comando”, diz Noll. “A
religião da Bíblia deu esse passo.” Entre os hebreus, os deus das suas camadas
intermediárias foram eliminados, restando apenas o deus-chefe e os mensageiros.
A palavra “anjo” vem do grego Angelos,
tradução para hebraico Malak, que
significa mensageiro.
El, o deus-chefe cananeu, é um dos nomes de Deus na Bíblia,
geralmente acompanhado de um adjetivo, como El shaddai, “deus todo-poderoso” ou
Elohim “deus dos deuses”. O nome Yahweh, por sua vez, não aparece em textos de
outros cananeus. A primeira menção de Yahweh é em inscrições egípcias do século
14 a.C., que se referem aos “Nômades de Yahweh” e o associam com pessoas que
viviam em Edom – não nas terras dos hebreus, mas um pouco mais ao Sul.
O Velho Testamento parece sugerir uma origem politeísta,
principalmente em seus livros mais antigos. Existe várias passagens como “Senhor,
quem é como Tu entre os deuses?” (Êxodo 15:11). Ou “Terrível é Deus na assembleia
dos santos, maior e mais tremendo que todos os que o cercam” (Salmos 89:7), que
parece falar em algum tipo de panteão.
Quando o culto a Yahweh se expandiu ao Norte, a religião dos
hebreus começou a mudar. “Primeiro, houve uma fusão de várias divindades da
figura de Yahweh, entre elas El, Asherah
e Baal”, diz Mark Smith. Basta ler os poemas bíblicos mais antigos para
perceber essa fusão de deuses. Na Bíblia, Yahweh assume os atributos de Baal
como senhor da tempestade (“A voz do Senhor despede relâmpagos”, Salmos 29:7).
Achados arqueológicos mostram sua fusão com El, ao assumir a esposa dele: em um
templo hebreu do século 9 a.C., está escrito: “Yahweh de Samaria e sua Asherah”.
Em uma tumba do século 8 a.C. do reino de Judá, alguém deixou registrado: “Yahweh
e sua Asherah”. Pois é, os antigos hebreus achavam que Deus era casado.
Cultos Exclusivo
Ao longo dos séculos, sacerdotes, profetas e monarcas
reforçaram o culto exclusivista a Yahweh. Por volta de 700 a.C.,
definitivamente havia uma religião separada daquela praticada pelos vizinhos, com um grande foco
nesse deus. Mas não era universal. “Se você entrasse em uma maquina do tempo e
voltasse a Palestina daquela época, veria que a maioria das pessoas era
politeísta. Outras eram henoteístas. Mas elas não se definiam assim. Não se
preocupavam com isso”, diz Gnuse.
No entanto, um acontecimento mudaria essa história para
sempre. Em 586 a.C., as muralhas de Jerusalém vieram abaixo. O rei babilônio
Nabucodonosor invadiu a cidade, queimou o mítico templo dedicado a Yahweh e mandou boa parte dos judeus para o exilio
na Babilônia. “O exilio durou apenas meio século, mas teve uma força criadora
impressionante”, diz o historiador britânico Paul Johnson no livro Historia dos Judeus. “Assim como os períodos
de Abraão e Moisés haviam produzido a religião de Yahweh, os anos durante e
pós-exilio desenvolveram e refinaram o judaísmo.”
Durante o exilio, rabinos e escribas compilaram e editaram
as tradições orais e os pergaminhos traduzidos do templo destruído, agregando textos
novos para reverenciar Yahweh e condenar o culto a outros deuses, dando origem
ao Tanakh, o livro sagrado do
judaísmo, o que deu forma definitiva a religião. Em 539, o rei persa Ciro
derrotou os babilônios e permitiu a volta dos judeus a Canaã, o que foi visto
como uma intervenção direta de Yahweh. Nos anos que se seguiram, os editores
deram os últimos retoques no seu novo projeto de fé. O primeiros dos Dez
Mandamentos afirma: “Não terás outros deuses diante de mim” (Êxodo 20:3). O que
era a preferencia por um deus transformou-se em uma lei vinda do céu, escrita
na pedra e punível com a morte.
Fonte: Revista Aventuras na História.